A porta abriu-se para fora, deixando escapar vozes espessadas por bagaço e o tilintar de copos.
Entrou, iluminado por uma lâmpada fluorescente, calcando restos de insetos imprudentes.
Num relance praticado, avaliou a clientela: homens sós, sedentos, curvados sobre canecas de líquido âmbar, e duas ou três criaturas, tão ressequidas e plásticas — sob várias demãos de maquilhagem — que a sua fome vacilou.
— Colheita parca… — Murmurou entre dentes.
Tudo que precisava era de uma mulher. Uma forma onde fincar os dedos, um receptáculo onde se libertar.
Ao voltar-se para sair — decidido a tentar a sorte noutro lugar — reparou numa mesa recôndita.
Ondas de cabelo preto tombavam sobre pele recheada, emoldurando pestanas fartas e lábios tenros. Olhos ensombrados fitavam um leque de cartas trilhado entre dedos compridos.
Aproximou-se — mesmo que não lho comandasse, o corpo tê-lo-ia arrastado.
— Impossível que ninguém lhe tenha oferecido uma bebida.
Devagar, duas safiras levantaram-se para ele.
O bar pareceu silenciar-se enquanto o observava — impávida, peito a oscilar com a respiração, animando um fio de ouro lá pousado.
E ele, paralisado, com os ouvidos a pulsar, a própria carne a responder — uma angústia crescente, já no limiar da dor.
Até que a mulher pestanejou, quebrando a tensão, permitindo-lhe inspirar de novo.
— Não aceito o que chega de propósito velado.
Ele arrastou a cadeira livre — um ranger ensurdecedor entre a quietude sobrenatural — e sentou-se.
— Nada há de velado nos nossos propósitos.
Ao inclinar-se para a frente, ela deixou escapar algo do seu decote profundo. Uma chave dourada que se precipitou sobre as cartas, onde ficou suspensa pelo fio.
— Ou muito mais do que desejariam ver revelado.
Ele mal a ouviu, de olhos presos no objeto demasiado familiar, demasiado real para um pendente.
Foi o toque da mão quente que o despertou.
Com um gesto firme, a mulher guiou-o até sentir cartas longilíneas contra a sua palma.
— Como eu disse, não aceito nem dou nada sem saber.
Ele mediu-lhe o olhar, antes de cortar o baralho com uma gargalhada incerta.
Nas mãos dela, as cartas pareciam joias. Três foram lançadas, de face para baixo, uma ilustração daquela mesma chave dourada triplicada sobre a mesa.
Passou uma mão pela testa, alarmado ao sentir humidade, e clareou a garganta.
A primeira carta foi voltada — uma figura vermelha e maligna.
— No passado, o diabo. Manipulativo, obsessivo, destrutivo.
Apertou as mãos sobre o colo, fincando unhas contra a própria pele.
Acaso, nada mais…
Uma mão delicada estendeu-se sobre a segunda carta e, com um farfalhar, revelou um homem preso pelo pé.
— Presente, o enforcado. Consciência, consequência, impotência.
Um fervor trepou-lhe pela pele. As palavras eram demasiado certeiras para seu alívio.
Não significa nada.
É um engodo… um jogo.
Mas o olhar já deslizava para a terceira carta.
Para o seu futuro.
Não… não quero saber.
Moveu os pés, descolando-os do chão pegajoso, num instinto de fuga. A ânsia que procurara aliviar fora substituída por outra, incandescente no seu peito.
Eu não quero…
— Só mais uma carta… — A mão regressou à dele, os lábios carnudos sorriram, a chave pendulou entre os dois em lampejos de ouro. — …para o teu propósito.
A tensão explodiu dentro dele, ateada por aquele toque.
Os olhos saltaram da carta, para a mulher que via demasiado…
Para a chave maldita.
E um esgar rasgou-lhe o rosto, libertando um rugido.
— Eu não quero isto!
Levantou-se com violência.
Correu.
E ao embate da cadeira contra o chão, já a porta se fechava atrás dele.
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