Consciência regressou ao corpo. Olhos abriram-se. Luz fluorescente dançava em formas indistintas. Contra a pele, um frio inflexível.
Onde estou?
Tentou mover-se. O centro da gravidade mudara durante o sono, exigindo demasiado em troca de equilíbrio. O tronco tombou para o lado e uma mão disparou para prevenir o choque. O mundo era branco — despido e ofuscante. Havia uma moedeira no centro dela, revestida de um receio indefinido.
Tens de ir.
Não sabia onde, ou porquê. Apenas que o tempo escasseava.
Levantou os olhos, reconheceu o tom enferrujado do lavatório. Esticou dedos trémulos para se apoiar na louça. Mas a pele humedecida não oferecia atrito. A pega deslizou. O pulso chocou contra o chão, arrancando-lhe um gemido de dor. Puxou a manga para trás, devagar, expondo o padrão roxo-esverdeado da pele tensa.
Levanta-te!
Sobressaltou-se. Levou ambas as mãos ao azulejo e apoiou-se sobre os joelhos. Mas antes que se conseguisse levantar, ou rastejar, sequer — congelou.
Vem aí.
Preparou-se — sem saber para quê — cerrando os dentes. A dor surda transformou-se numa tensão que escalou e alastrou, até lhe transformar o ventre em rocha, apenas para a quebrar com uma agonia dilacerante. Trincou a língua — crente de que conteria a dor se silenciasse o lamento. Até que um ferro incandescente a atravessou, de baixo a cima.
Gritou — até o seu lábio rachar onde ainda mal se cicatrizara, pintando-lhe a boca de vermelho vivo.
Até o tormento finalmente se abater. E o corpo voltar a ser seu.
Pousou a testa contra a laje, deixando decalques rosados sobre a pedra gélida.
Tens de ir!
Com uma inspiração forçada, e mão como um escudo sobre o abdómen enrijecido, começou a arrastar-se. Um, dois, três movimentos secos levaram-na até à porta.
Mas a maçaneta girou em falso.
Arfou, limpou os dedos na roupa, trancou-os em volta da saliência metálica e girou-a de novo.
Em vão.
A porta estava trancada.
— Deixa-me sair!
Nenhuma resposta, exceto o murmúrio de uma televisão ao longe.
— Deixa-me… — Sentiu a tensão voltar, o corpo contrair-se sobre si mesmo. — Deixa-me sair!
Bateu os punhos contra a madeira e retraiu-se com um silvo de dor.
Mas aquele sofrimento era uma razia, e o que se seguiu, um tsunami. Uma lâmina de fogo, espinhos e vermelho trespassou-a — do âmago do seu ser a cada pedaço da sua carne.
Gritou de novo, a voz mais quebrada que a sua pele. Como se fosse pela garganta que nova vida lhe saísse.
Gritou até esvair ar, sangue e consciência.
Então, nada. Silêncio. Até —
Uma inspiração.
Um choro a ecoar entre paredes polidas.
Consciência regressou ao corpo. Contra a pele, calor e movimentos suaves.
Estás aqui.
Curvou-se para pegar no ser que estrebuchava contra a sua coxa. Abraçou-o, com delicadeza, receosa de que quebrasse.
— Olá…
Passou um canto de tecido pelo rosto contorcido, limpando-o. O choro abateu-se. Olhos virgens abriram-se — tingindo o mundo de verde. Ela pousou um beijo sobre a pele glabra.
— Olá, bebé…
Uma mão minúscula encontrou-lhe o dedo. Paz encontrou o todo do seu ser. Uma lágrima traçou o seu sorriso antes de cair sobre o cabelo dourado.
Só então viu.
O beijo ensanguentado que tatuara. O antebraço marmoreado sobreposto à pele imaculada.
O futuro.
Passos soaram fora da porta.
Braços apertaram-se em reflexo, extraindo uma lamúria do seu colo.
A porta abriu-se com um rangido.
Ela não gritou.
Segurou o corpo frágil contra o seu.
E cerrou os olhos.
Eu estou aqui contigo.
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