Hesitou antes de entrar, com passos reverentes.
Deixou os sentidos reconhecerem o espaço — silhuetas delineadas por luz de velas e o ar acre, perfumado pelo suor dos seus trabalhos.
Um murmúrio ríspido puxou-lhe os olhos para o centro da divisão. Lá, adivinhava-se uma mesa de madeira maciça pelos seus ângulos severos.
Sobre o tampo desalumiado, um vulto estremecia, insignificante.
Urgência insurgiu-se sobre ele, acelerando-lhe o pulso.
Está a chegar.
Aproximou-se. Arregaçou as mangas de algodão lasso e, ao pousar as mãos sobre a sua criação, sorriu.
Uma lamúria atravessou o espaço, sobre a canção infantil que emanava de um canto da sala — dissonante e repetitiva.
Ignorou-a. Havia demasiado a fazer e pouco tempo.
Quase nenhum.
Palpou a superfície de madeira e o garrote fino caiu com um som metálico. Sobre a mesa, a peça retraiu-se com violência, um instinto quase humano, e ele agarrou-a — dedos cravados em extremidades ainda tenras.
Não foi suficiente…
Suspirou e mergulhou a mão num recipiente, empunhando pasta suave e fresca. Mesmo vendo-a debater-se, ouvindo os soluços, não hesitou.
Enfiou-lhe a argila pela garganta abaixo — deixando matéria fundir-se com carne e fraqueza tornar-se vigor. Temeu que se engasgasse contra o seu punho.
Mas os gargalejos húmidos e desesperados abrandaram — sem aflorarem a asfixia — espasmos reduzidos a um tremor.
— Chiiiiiu… Estás tão perto.
Murmurou, acariciando-a, dedos percorrendo a pele rugosa antes de descerem para o tampo. Um objeto frio e duro roçou-lhe a pele.
Estranhou.
Elevou-o à luz das velas e reconheceu uma chave que nunca vira antes — que não era sua.
Ou será?
O brilho dourado, o peso do metal — o calor que parecia libertar — inebriantes.
Havia uma porta…
O olhar quis desviar-se, mas ele obrigou-o a ficar sobre a mesa.
Eu tenho de fazer isto!
Arremessou a chave, a queda abafada por uma pilha de brinquedos — em tempos macios e coloridos, agora relíquias encrustadas a cinzento.
Desta vez, quando a mão se baixou para a mesa, encontrou o cinzel — pequeno, gasto. Aguçado.
Tão pouco tempo…
Agarrou-o e esculpiu. A matéria estava no ponto, obediente e maleável sob lágrimas silenciosas.
Esculpiu — frenético, incansável — até linhas de transpiração lhe pautarem a pele e a melodia desarmónica cessar.
E foi quando viu vermelho que soube.
— Consegui.
Afastou-se.
Olhou.
Estudou a sua obra.
Uma dor fina reluziu no seu peito. Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto, benzendo o maçarico que empunhou.
— Agora és como eu.
O fervor crepitante cristalizou as feições da criação, pele reluzente transformada em cerâmica. No fim, aproximou o rosto do dela e soprou. Devagar.
Mas, nada.
Durante uma eternidade, nada.
Não… eu fiz tudo bem.
Eu…
Ar tornou-se cal nos pulmões dele quando olhos negros — outrora verdes — giraram para os seus.
Lábios pálidos repuxaram-se para cima, fissurando a pele em redor com um tinido.
Num estigma.
— Pai…?
Levou uma mão à boca, aprisionando o horror dentro de si.
Uma campainha cortou o silêncio.
Ela tinha chegado.
Viu a criança endireitar-se com movimentos rígidos. Fragmentados.
— Mãe.
A voz cristalina estalou — tal como tudo nela.
Viu-a procurar o canto. O azul violento da televisão banhava-lhe a mochila pequena.
Cerrou as pálpebras com força.
Cobriu-as com as mãos antes que fosse tarde demais — antes que os olhos mortos se voltassem para os seus.
E ficou à mercê da voz aguçada.
— …deixas-me ir?
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