As barras resistiam — baças contra a escuridão. No canto, uma forma morta testemunhava. Os cliques da espingarda entrecortavam um murmúrio de respirações.
Enquanto os dedos trabalhavam, ele perscrutava para além das grades. A mente quietada — por ora.
— Água?
Viu-o sentar-se sobre o colchão — mais fino que o metal que o sustentava. Um último clique, e estendeu a garrafa.
O rapaz levou-a aos lábios ressequidos, bebendo menos do que precisava.
Olhou pela mira. A escuridão permanecia estática, a ameaça velada.
Um som incomum interrompeu-lhe a vigília. Afastou a arma, fitou o rapaz.
Curvado para a frente, cotovelos contra joelhos, esmiuçava algo entre os dedos. O som repetiu-se — um pigarrear contido.
— Não se… Não se ouve nada.
Endireitou-se, pousando a espingarda ao seu lado, sobre o colchão.
— Não.
Os olhos do rapaz varreram a jaula, mãos inquietas no colo.
— Por que é que nunca se ouve nada?
— Já sabes.
O cabelo oleoso brilhou com o abanar da cabeça.
— Sei?
Suspirou. Um fluxo brusco pelo nariz. Repetiu. Mais uma vez.
— Apenas ouve quem foi marcado.
O rosto que o fitou era desafio incarnado. Mocidade. Luxo de quem nunca viu. Nem sentiu.
Mostrou-lho. Outra vez. O braço mutilado — a pele retorcida sobre carne deformada.
O rapaz esticou dois dedos, e ele retraiu-se antes que lhe tocasse.
— Dorme.
Uma exclamação de desdém foi absorvida pelo negro espesso.
— Dorme.
A expressão crispou-se. Mas o corpo obedeceu, estendendo-se.
A qualquer dia — qualquer momento — deixaria de o fazer.
Pegou na arma e retomou o ritual. Inspecionou-a, enquanto a explorava com os dedos, mente atenta à respiração que não se abatia, ao sono que não chegava.
Algo tilintou e os olhos do rapaz relampejaram — para a porta atrás dele, e de volta.
Insurgiu-se.
— Não! Tu viste o que aconteceu.
O corpo no canto permaneceu em silêncio, o cabelo longo tombado, enquanto o rapaz se levantava de um salto.
— Ordenaste que esquecesse.
Ergueu-se ele, então, mas a estatura deixara de ser vantagem.
— Sabes o que aconteceu.
O rapaz abanou a cabeça com violência.
— Aqui, a tua voz. Lá fora, silêncio. Aqui, o teu império. Lá fora, liberdade.
— Morte.
— Aqui, contigo.
Um clarão dourado chamou-lhe a atenção: uma forma longa, assimétrica, projetada da mão do rapaz — brandida cada vez mais perto do seu peito.
Só ao ouvir o novo clique se apercebeu de que destravara a espingarda — tantos anos fizera dela parte de si.
E entre a gargalhada quebrada do rapaz, ouviu um rosnar tão baixo que podia ser ilusão.
— Sai da frente!
A voz alarmou-o. Reagiu — cano de metal esmagado contra a garganta do próprio filho.
— Cala-te.
— Sai da frente!
Foi projetado contra a grade — ouviu-se o estalo de costelas a quebrar. Atravessou-o uma dor quente e doentia.
E o rosnar regressou, mesmo ao seu lado.
Incapaz de ganhar fôlego, assistiu à batalha: chave de ouro contra fechadura enferrujada. Viu a última prevalecer.
Riu-se, acídico e húmido, e decaiu num acesso de tosse.
Foi a vez do rapaz se atirar contra o metal.
A jaula estremeceu, com um trovão. Viu-o dar dois passos para trás — pé apoiado no alçapão dourado, corpo armado para a nova investida.
— Não!
Um estrondo. A porta estatelou-se contra o chão. O rapaz correu para fora — viu-o ser engolido pelo negrume.
Corpo putrefacto esquecido no canto.
Chave dourada esquecida no chão.
Um momento de silêncio.
Até reconhecer o rugido — faminto, selvagem — do rapaz.
Sentir as mandíbulas encontrá-lo.
E mergulhar em vermelho.
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