Ave-Maria, cheia de Graça…
Dedilhava uma conta, com a mão esquerda, pedra fria e suave contra a sua pele. Com a direita, aplicava pressão sobre a ferida. A caldeira crepitava, libertando o seu calor opressivo para o espaço pequeno. Há anos que um odor metálico o permeava, sem nunca dissipar.
Bendita… Bendita sois vós…
Sob a mão dela, o cordeiro arquejou de dor. Aliviou a pressão, antes de oferecer consolo.
— Eis que te purifiquei, mas não como a prata; provei-te na fornalha da aflição.
Olhos escuros, rodeados por hematomas violáceos fixaram-se nos dela. Aproximou um pano embebido em mercurocromo da pele quebrada e suspirou. Talvez não precisasse de linha, hoje.
Bendito é o fruto do vosso ventre…
Pressionou de novo e, enquanto o cordeiro gemia, sorriu. Perscrutou o tampo adornado por um pedaço de tecido limpo.
— Não vai parar.
Ao ouvi-lo, cerrou os dentes e largou o pano sobre o colo.
— Quem se nega a castigar o filho não o ama, quem o ama não hesita em discipliná-lo.
Encontrou o quadrado de tecido — flores desbotadas de um vestido antigo — e encostou-o contra a ferida. Uma rosa vermelha desabrochou entre as outras.
Rogai por nós pecadores…
— E a ti?
Linhas de fogo pautaram as costas dela, relíquias de sacramentos passados.
— Foi-me bom ter sido afligida, para que aprendesse os teus decretos.
O cordeiro enxotou-lhe a mão para longe.
— Cegas-te.
Inspirou fundo, pousando o tecido vermelho sobre o altar.
— Gloriamo-nos nas tribulações, pois a tribulação gera perseverança… — Seguiu um reflexo luminoso com os olhos. — …a perseverança, experiência. E a experiência… esperança.
— Esperança… — O riso dele pareceu aflorar o vómito. — Mãe… por favor.
Ela sorriu. Soltou o rosário para remover um dos fios que pendiam do seu pescoço.
— Ensina a criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviará dele.
Contemplou a chave dourada presa entre os dedos finos, e baixou o fio sobre a cabeça do cordeiro. Ele exclamou, sacudindo-se como que em agonia. Talvez o queimasse. Talvez a redenção fosse demasiado real, demasiado pesada.
— Por favor… chega.
Ela abanou a cabeça, compassiva. Agarrando-a pelos ombros, o cordeiro sacudiu-a.
— Ele vai matar-me!
Tocou-o, pele despida tingiu-se de vermelho.
— Sem derramamento de sangue, não há remissão de pecados.
— Pecados… que pecados?
— Eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe.
Os lábios ressequidos arquearam num O silencioso, miserável.
— Preciso que acordes.
— Não há justo, nenhum sequer.
— Pára…
— O Senhor corrige a quem ama.…
— Já chega! — O cordeiro levantou-se. A mesa de veneração tombou. O ruído progrediu, lânguido, pelo ar quente e denso.
— O Senhor…
— Cala-te, por favor… — Lágrimas escorriam-lhe pelo rosto desfigurado ao trancar uma mão nos fios de ouro.
— Ensina…
— Cala-te. Cala-te!
O cordeiro torceu o pulso. Os fios apertaram-se contra o pescoço dela. Marcando. Cortando.
— Ensina…
— Já chega!
Puxou e torceu até os fios se cravarem na traqueia dela, esmagando-a.
Sem ar, os pulmões incendiaram-se. Os olhos turvaram. As pernas espasmaram.
Ensina a criança no caminho em que deve andar…
Resistiu. Lutou em busca de fôlego. Até que os viu — milhares de pontos incandescentes, a descer sobre si.
Sorriu.
E o corpo colapsou. Um baque surdo reverberou entre as paredes, seguido pelo tilintar da chave dourada que caiu de uma das mãos.
Um último pensamento relampejou pela consciência que se extinguia:
Agora e na hora da nossa morte.
Ámen.
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