Ao entrar, viu o corpo.
A pele marmórea recobria tecidos mais frios do que a mesa de metal que lhes servia de suporte. E ainda sangrava. Um riacho rosado tombava pelo flanco, sobre o chão, alimentando uma poça vermelho-pálido com cada bater do coração moribundo.
Levantou os olhos para o teto e viu a noite encoberta através das comportas escancaradas. A tempestade ainda não chegara, ribombava ao longe, fazendo-se sentir na sua pele antes de ser ouvida.
Aproximou-se, sustendo a respiração para manter o odor putrefacto longe das papilas gustativas, e viu-o do outro lado, de olhos postos na forma exânime, como se não a reconhecesse pelo que era, sem sinal de que notasse a sua chegada.
Relutante, devolveu a atenção à mesa. Uma onda de náusea abateu-se sobre si, balanceando-a sobre os calcanhares.
Quando fora a última vez que estivera naquela sala?
Decerto não pendiam, então, tão inertes e desconexos, os quatro membros? Aqueles dedos que ela mesma moldara da sua ingenuidade, jamais os vira raquíticos como agora, as pontas ratadas ao ponto de ver o osso amarelado. O braço que entalhara da sua resiliência reduzido a um toro acinzentado?
Não o poderia ter visto antes.
Eram, contudo, as suas esperanças que o seguravam ao tronco — centenas de linhas descoradas que tinham sido incapazes de resistir ao tempo.
Do outro lado era ainda pior. A força e o ego dele, reduzidos a escombros que nem as suas falsas promessas haviam conseguido sustentar.
Com uma lágrima a rolar pelo seu rosto, contemplou o da figura.
As íris dos olhos não eram visíveis, apesar das pálpebras repuxadas, quase sem pestanas. Tinham-se voltado para dentro, em busca de ilusões, quando a realidade se revelara incomportável.
Fora essa a primeira mudança, há tantos anos. Agora as escleróticas apenas refletiam os clarões da tempestade que depressa se acercava.
Entre os lábios entreabertos, nada havia onde a língua deveria estar. Obra dele, que cedo quisera silenciar o que não admitia ouvir.
Sobressaltou-se quando uma inspiração agónica se soltou da boca vazia.
Com uma convulsão do peito, o caudal de líquido rosado engrossou por momentos. Antes de afilar e afilar. Até que cessou.
Não!
Atirou-se para a frente, dedos entrelaçados sobre o peito despido, e comprimiu. Mas, em vez de transferir o seu ímpeto para o coração inerte, as mãos atravessaram a caixa torácica, enterrando-se em algo húmido e esponjoso.
Ouviu, do outro lado da mesa, um lamento animalesco como nunca conhecera.
Estava a recolher as mãos trémulas e ensanguentadas quando notou um movimento para a direita — na barriga volumosa que evitara até então.
Uma agonia farpada atravessou-a de dentro até fora, ao mesmo tempo que um trovão soava na proximidade.
Não tinha o tempo ou os instrumentos necessários para agir de outro modo, por isso espetou as unhas na pele acinzentada e puxou. A cavidade abriu-se com um som como tecido a esfarrapar e um pranto aguçado encheu a divisão.
Tenho de a tirar daqui.
Assim que as suas mãos se prenderam em torno do corpo frágil, as dele mergulharam dentro do abdómen arruinado e cercaram um dos pequenos braços.
O choro intensificou-se, enquanto outro trovão rebentava, agora sobre eles.
— Larga-a!
— Ela é minha. — Rugiu.
Fora o seu corpo que a criara. O seu amor que a nutrira. A sua coragem que a mantivera viva.
Puxou com mais força — tanta quanto se atrevia, perante o toque dos ossos finos contra as suas palmas e os guinchos que a tração provocava. Mas um gesto brusco fê-la perder a pega.
Agarrou o que pôde, como pôde.
O outro braço.
Agora, cada um tinha o seu e puxavam em sentidos opostos. O cabelo dourado pendia para um lado e outro. O choro era cada vez mais desesperado. Os trovões cada vez mais ensurdecedores.
— Ela… é… minha!
Com um som viscoso e doentio, a bebé rasgou-se em dois.
Sem hesitar, prendeu a sua metade entre os braços e disparou em direção à saída.
Ao mesmo tempo que o último trovão soou, um relâmpago caiu sobre a estrutura metálica e percorreu-a, fulgurando-a.
Virou as costas e correu porta fora.
Nada havia para ressuscitar.
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