O alarme tocou. Deixou o zunido percorrê-lo, sem desviar os olhos do céu laranja-avermelhado. Era a última vez que o ouvia.
No teto, um outro ruído, elétrico e agudo, intensificou-se, até uma lâmpada se desfazer em navalhas de vidro. Lá fora, a estrela febril, no seu lânguido eclipse ao longo do horizonte, tornou-se na única fonte de luz disponível.
Com um tinido nos ouvidos, fechou a janela devagar. Era a última vez que o fazia.
Restava apenas quietude no interior do apartamento, silenciado o motor do frigorífico. Era indiferente. A comida que apodrecesse, já não havia ninguém para a comer.
Saiu para a rua, com passos de velcro. Bateu a porta e mergulhou na aura escarlate do dia moribundo. Era a última vez que o sentia.
Avançou, controlando o ressalto de calcanhar contra a calçada. Percorria os dentes frios e afiados da chave com o polegar. Aquela que não usara até então e que sempre lhe pesara, tão inerte, no bolso.
Uma família passou rente a si, e os risos despreocupados roçaram-no como lixa sobre pele escaldada. Acelerou.
A ponte aguardava, ao longe, tão metálica quanto o sabor da sua miséria.
Arrastou-se até lá e sentou-se na lateral, num pedaço de pedra iluminado pela réstia do dia. A ver as cores desaparecerem, enquanto a escuridão se apoderava de tudo.
Expirou, curvando-se sobre o rio, e deixou-se cair para a frente. Um último ato de cobardia, uma última subordinação à gravidade.
O fim puxou-o para baixo, através do ar frio e húmido.
Por um instante, paz.
Até que houve um baque seco. Depois uma série de estalidos e, por fim, um assobio leve.
A queda fora travada. A paz, usurpada. A dor, essa sim, absoluta, faminta, tragava-lhe a perna com dezenas de presas de fogo.
Ficara preso na escarpa, cabeça pendente sobre as águas. Saliva vermelho-vivo escorria da mandíbula de galhos que se enterrara na sua carne. Escorria-lhe quente pelo peito, pelo pescoço. Tingia-lhe a visão.
Vermelho. Sempre vermelho…
Mesmo na sua agonia, quedou-se, imóvel. Não gemeu. Aguentou. A sua consciência uma corrente ininterrupta, como a que cursava dezenas de metros abaixo de si.
Aguentou porque era a última vez que o fazia.
A noite fluiu infinita como o rio invisível por baixo de si. A dor violenta como o rio por baixo de si. O fim inalcançável.
Até que algo ganhou vida diretamente abaixo de si. Movimento. Relevo. Ângulos e linhas de água.
Olhou em frente. E viu tudo vermelho.
Os braços pendentes e intumescidos não se mexeram. Mas ainda conseguia sentir a chave, cravada na sua palma — uma relíquia de cada oportunidade perdida.
Desperdiçada.
O tempo corria como as águas turbulentas que o aguardavam. Pestanejou e viu laranja. Uma vez mais, e viu o dourado de uma estrela incandescente.
Contemplava, enfim, a beleza do nascer do sol quando a chave ardeu, fulminante, na sua mão.
Guinchou e esbracejou, tentando, em vão, rejeitá-la.
Um galho quebrou-se e o novo estalido reverberou entre as encostas.
Foi invadido por uma urgência que não conhecia há eternidades, uma voracidade sem fim, no momento em que o suporte cedeu.
E, ao cair, inspirou fundo.
Foi a última vez.
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