O calor acumulava-se entre as paredes, ondas refletidas em pedra polida. Não fosse pelas mãos invisíveis que o carregavam, ter-se-ia ficado ali, esgotado de oxigénio.
Uma porta de madeira maciça, enegrecida nos detalhes em relevo, abriu-se para trás. O fumo que se acumulava sob o teto foi o primeiro a atravessá-la, um riacho cinzento impérvio à gravidade.
Depois ele.
Olhou em redor. Linhas de cadeiras vazias enfrentavam um pódio de mármore branco.
Foi depositado na fila dianteira.
Esperou.
Por tempo indeterminado, tudo o que ouviu foi um crepitar seco, de origem desconhecida. Até que surgiram as vozes.
Uma a uma, ouviu-as chegar, murmurando entre si, somando-se, mais e mais, levando sussurro a ruído, culminando numa pressão que se insinuava, dolorosa, contra os seus tímpanos.
Cerrou os olhos, para não ver os recém-chegados.
Ainda assim, absteve-se de cobrir os ouvidos, tapando antes o nariz. De nada lhe serviu. Pó cobria-lhe a língua, forrava-lhe a traqueia, ardia-lhe nos pulmões.
Desejou ter um copo de água. Rezou por um.
Na sua mesa havia apenas um martelo de madeira e, preso sob ele, um objeto dourado, dentado e esguio.
Foi um súbito silêncio que redirecionou a sua atenção para o pódio.
Inspirou com tanta brusquidão que logo tossiu um punhado de pasta negra.
Uma mulher jovem ocupara o lugar de destaque.
Teria sido bela em tempos, feições delicadas e olhos claros. Metade dela ainda era — a esquerda.
O lado direito fora reduzido a osso, recoberto por réstias de pele retorcida e carbonizada, uma escavação profunda revelada pela ausência da pálpebra.
Quando abriu a boca, foi o mesmo fumo denso que se soltou, serpenteando de entre os lábios repuxados em direção ao manto negro que já obstruía o estuque por cima deles.
Só então saíram palavras discerníveis.
— Começou enquanto dormia. — Ele encolheu-se ao reconhecer alguma nota na voz ressequida. — Foi o cheiro que me despertou. Não soube a gravidade até sair. Os espelhos foram os primeiros a derreter.
Levantou-se, querendo acercar-se, perguntar de onde a conhecia. Mas a mulher já se sumira e, no seu lugar, havia uma criança.
As pernas cederam sob si, devolvendo-o à cadeira com um estrondo que se sobrepôs ao estalido incessante.
A menina não poderia ter mais de cinco ou seis anos. Cabelo louro caía-lhe assimétrico em torno do rosto, tingido de cinza e encrespado nas pontas. Dois olhos, negros como carvão, olhavam cegamente, sobre lábios rosados. E no pescoço…
Contorceu-se, querendo afastar os olhos. Foi incapaz de o fazer, como se um gesto incorpóreo o forçasse a olhar.
No pescoço, um orifício rodeado de plástico branco, rígido, projetado para a frente. Quando os lábios se abriram, foi uma música infantil mal sintonizada que preencheu a sala.
Cobriu os ouvidos. Porém, as mãos não ofereciam qualquer isolamento e a melodia familiar atravessou-o como um lobótomo.
A menina encaixou um, dois, três pequenos dedos no cilindro, obstruindo-o. A música cessou. Então, sim, falou, numa voz tão irregular e decepada quanto as suas madeixas.
— Começou enquanto brincava. O chão ficou morno. Depois ferveu. Não soube fugir. As maçanetas foram as primeiras a derreter.
Ele tapou os olhos, sem deixar de a ver.
Tentou inspirar pela boca, aliviar-se do odor acre que o envolvia. Engoliu tanta poeira que se curvou e vomitou borras negras sobre o chão.
À crepitação juntou-se um som agitado, como se o ar se movesse em sacadas que não se faziam sentir contra a pele cálida.
Olhou em frente e espasmou.
A criança desaparecera.
No seu lugar, uma forma humanóide fitava a sala.
Sem olhos. Sem pele. Apenas uma forma com quatro membros, um deles truncado — ossos afilados projetando-se da massa calcinada.
Sem voz. Ou vida.
Apenas aquela presença imóvel que ele conhecia demasiado bem, cuja acusação assentou sobre si — mais uma camada de borralho.
Tentou fugir.
As laterais do banco ergueram-se até ao nível do seu tronco.
Tentou gritar.
Apenas poluiu mais o ar.
Tentou agarrar no martelo, ditar a sua sentença, condenar-se a uma eternidade de agonia.
Mas o objeto apenas estalou, lambido por labaredas em forma de dedos.
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