Selecionar coluna cento e treze, criar função, duplicar, transladar para… para…
Pestanejou, perdido. Havia uma dor, algures. Desviou os olhos do ecrã, trazendo a mente de volta ao corpo em que nascera.
A dor intensificou-se, um latejar agudo no vértice do cotovelo.
Demasiado tempo na mesma posição, carne trilhada entre o osso e a madeira gasta da secretária — carne que, até momentos antes, mal se lembrava de possuir.
Esticou o membro, restaurando a circulação do tecido em sofrimento.
Apercebeu-se de que havia também ruído.
Reconheceu o shhh do ar condicionado, que cuspia ar frio — tão bafiento quanto o que já preenchia o cubículo — entre tartamudos mecânicos.
Identificou o tac tac tac de centenas de dedos a baquetear milhares de teclas distribuídas por dezenas de teclados, em dezenas de cabines idênticas à sua.
Isolou o tic tic tic de um relógio analógico à distância, metrónomo e maestro, que os conduzia ao longo da melodia interminável de expediente. E havia ainda outro — um que não se atrevia a interpretar — mais fraco que os restantes.
Mais contínuo, mais… antigo.
Com uma apreensão inesperada, tentou devolver a atenção ao computador.
Coluna cento e treze, função, duplicar…
Contudo, a dor não desaparecia. Pelo contrário, tinha passado de latejo a guinada, como se fosse um nervo descarnado que agora apoiasse contra a madeira.
Massajou a zona de ofensa, exacerbando antes de amenizar.
O tic tic tic e o tac tac tac continuaram, tão ou mais prova de vida que o bater do próprio coração. Imaginou os teclados, uma vez mais, os cubículos intermináveis, e escarneceu a fertilidade da sua mente.
Afinal, nunca os tinha visto — nunca olhara para além do seu cárcere. Era pago para transformar números. Nada mais.
Nunca se sentira compelido a olhar… até agora.
Crrr.
Um rangido súbito sobressaltou-o — baixo, mas próximo e tão díspar do padrão sonoro nele enraizado, que abraçou o tronco.
Talvez algo se movesse do outro lado da divisória?
O cabelo eriçou-se-lhe na nuca. Ocorria-lhe agora, pela primeira vez, que nunca ouvira nada dos seus colegas, além dos seus dedos. Nenhum movimento, nenhuma palavra — nem sequer um espirro.
Deu por si a traçar o pesa-papéis com os dedos, o toque sólido do ouro tornado uma âncora necessária.
Fitou o monitor, as colunas intermináveis, cujo conteúdo numérico lhe competia digerir e regurgitar — ocupando mais colunas, exigindo funções demais, expelindo resultados já fora do alcance de qualquer interpretação.
Coluna cento e… Cento e quê?
Socou a cabeça de leve, como se pudesse fazer o número tombar para a consciência. Não devia ser tão difícil — nunca fora. Precisava do envelope que lhe chegaria no final do mês e o metrónomo não permitia paragens.
Socou com mais violência, como se conseguisse entorpecer o ego de volta ao silêncio.
O efeito foi o oposto.
Em vez de silêncio, amplificou-se o ruído: shhh, tac, tic e aquele crrr que nunca ouvira antes e que agora parecia instalado no cubículo da frente.
Levantou-se, devagar, e esticou as mãos sobre a secretária, em direção ao tabique. Os dedos vacilaram em torno do contraplacado, antes de lhe agarrar.
Esticou-se — elevando calcanhares cujo peso duplicara, perfurando ar gélido com o topo da cabeça — e forçou-se a olhar.
O grito que soltou foi logo engolido pelo ranger infernal da engrenagem.
Não era um escritório, um piso, um edifício sequer.
Era uma roda monstruosa, da qual apenas via parte.
Uma roda com centenas, senão milhares, de raios que partiam do cubo e terminavam em centenas, senão milhares, de cubículos exatamente iguais ao seu.
E, no interior de cada um?
Cadáveres presos à vida por contrato, animados apenas do pulso em diante, condenados a digitar a eternidade. Olhos velados, lábios ressequidos, corpos mais enxutos que as películas de madeira que lhes pouparia aquela visão diabólica.
Mas nenhum parecia capaz de olhar, imobilizados nas suas cadeiras por…
Atirou-se para trás, com um guincho.
Mas eram apenas cordas, vermelhas como sangue, que se enrolavam em torno da sua cinta. Empunhou o pesa-papéis e atacou as amarras, frenético.
Tão frenético que não apreciou o som que se somou aos outros — o clac clac clac do cadeado dourado contra a cadeira com cada golpe.
Tão frenético que não cessou, até a última fibra escarlate se romper sob os dentes aguçados, e a gravidade se apoderar de si — puxando-o não para o chão, mas através do ar gélido, em direção ao que meia-volta da roda consagrara como seu destino:
Apenas outro número, cumprida a função, transladado para outra coluna.
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