Nasce o sol. Dedos dourados acariciam o cobertor, o lençol, a pele dela. Pupilas, contraídas pela luz, fitam a outra almofada.
Vazia.
Suspira.
Passos morosos levam-na até ao quarto de banho. Passos resignados trazem-na de volta. Deixa-se abraçar por algodão — do pescoço aos pulsos, até aos tornozelos. Senta-se à penteadeira e contempla o conteúdo do porta-jóias — relíquias de uma vida tão cedo esgotada.
A luz da manhã ainda banha os pés da cama — há tempo para um sonho.
Afasta a chave de ouro e pega em brincos, gargantilha e anel de noivado.
Desliza os dedos pelo espelho. Memórias cristalinas cintilam. A lágrima que tomba completa o novo conjunto.
A hora acelera. Guarda o colar, prende o anel entre dois dedos e puxa. Não se move. Estabiliza-se, cotovelos firmes contra a madeira, e volta a puxar. Nem um milímetro.
Corre até ao lavatório, despertando uma dor surda na anca. Esfrega sabão na mão direita — com o rosto a queimar — uma e outra vez. Puxa de novo, e o anel sai como se fosse demasiado largo.
Ri-se, entre lágrimas, enquanto o devolve ao seu lugar.
Põe a sertã ao lume. Óleo estala sob ovos frescos. Gotículas pintalgam-lhe as mãos de fogo. Arregaça as mangas depressa — não vá queimar-se o vestido.
O padrão florido faz tandem com o da pele.
Ouve um tilintar de metal, o roçar de uma chave contra a fechadura. Endireita-se. Fecha a mão em torno de algo que não está lá. Desliga o lume, cobre os antebraços num gesto aprendido, e dirige-se à porta.
Quando ele entra, traz consigo o aroma de cerveja azeda e fumo de tabaco.
Sem uma palavra, beija-lhe a face e senta-se à mesa. Ela apressa-se a servi-lo — pratos carregados de sal e gordura, os favoritos — e ocupa uma cadeira.
Os olhos escuros mal se desviam da comida até terminar. Quando enfim pousam nela, semicerram-se, inquisidores.
— Como foi a noite?
Apesar de estranhar a pergunta, não hesita em responder.
— Terminei a bainha das tuas calças. Li um pouco, nada mais.
— Alguma visita?
— Não.
Ele inclina-se, mão esticada na direção dela, e prende-lhe uma madeixa atrás da orelha. Ela congela, trespassada por uma dor fina. Não precisa de ver — sabe já o erro que cometeu.
— Experimentava-os em frente ao espelho.
Ele fita-a, impávido. Ela sustém a respiração — aterrorizada de dizer a coisa errada, de inspirar da forma errada. Ainda assim, o terror repuxa-lhe o lábio num trejeito involuntário.
Um estouro. Uma cadeira embate contra o chão de pedra. Já a tem agarrada pelo pescoço, arrasta-a para trás.
Ao colidir com a parede, o crânio reverbera num baque seco. Pontos luminosos dançam-lhe pelas pálpebras cerradas.
Pensa em estrelas: noites quentes de verão passadas ao relento, cheiro a terra molhada, frescura da relva sob pés descalços.
— Achas que fazes de mim burro?!
Tenta inspirar. O ar não passa pelo aperto. Arde-lhe o peito.
Lembra-se do mar: desafios e minutos vitoriosos debaixo da água, toque frio das algas, odor iodado do sal, rebentar cíclico da maré.
— Responde-me!
Ele atira-se para a frente, esmagando-a contra a parede. Sem fôlego, sem voz, não tem como o fazer.
Imagina flores de primavera — prensadas entre folhas de papel vegetal. Um dia efémeras, tornadas eternas. Resistentes.
— Cabra do caralho!
O corpo dele afasta-se, de repente. Sem oposição, o dela colapsa sobre o azulejo, alívio fundido com agonia.
Tosse.
Chia.
Agarra-se ao peito até o sabor amargo desvanecer.
A casa está em silêncio. Ele saiu outra vez.
Ergue-se sobre os joelhos e rasteja até ao quarto. Alcança a caixa de madeira escondida atrás da penteadeira. Abre-a.
Pega na pistola, reconhece-lhe o peso — o frio metálico contra dedos trémulos.
Dá por si a pensar em travessões incrustados de zircónias. Abafa um soluço com o dorso da mão. Inspira fundo. Guarda a arma, com reverência.
Respira fundo.
E pensa em broches incrustados de rubis.
Afinal, o que seria de uma noiva adornada de ouro sem o seu noivo em vermelho?
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