Não devia estar acordado. Talvez nem estivesse — demasiado densa aquela escuridão para ser apenas noite. O quarto dorme, inspira e expira num sussurrar de paredes. E ele, ainda acordado.
Deveria ser um momento de paz, de silêncio. Aqueles pensamentos… O que faziam ali? Agora?
A cama dorme, aconchega-se num ciciar de lençóis. E ele, ainda acordado.
Pensamentos agitados como marés — lambem-lhe os pés, depois levam-no de arrasto.
É submerso, tragado pelo passado — povoado por demasiados espectros. Esgotado demais para resistir.
Vê-lhes não as caras, mas as mãos.
Há muito que aprendera: os mortos falam por gestos.
Roubados da sua voz, só lhes resta gesticular — dedos cadavéricos traçando sibilos no próprio silêncio.
Silvos condenatórios que o afastam ainda mais do seu sono.
Prepara-se para ir à cozinha, agitar garrafas em busca de um gole. Os músculos desobedecem, não concebem movimento.
O corpo está a dormir. Queda-se, animado apenas pelo sangue e pelo resvalo do ar — num murmúrio que, da sua clausura, lhe parece demasiado rápido.
Ainda assim, vê lâminas de luz trespassar as frinchas da janela. Lá fora as ruas acendem-se para os que escolhem não dormir — quando tudo o que ele quer é adormecer.
Algo duro lhe pressiona a base do crânio — esquecido sob a almofada.
A chave. E ele incapaz de lhe chegar.
Ouve-se um estalido. Tenta virar-se — em vão.
Abandonado. Traído por todos. Agora, até pelo corpo. Deixado ali, naquela mísera existência.
Só.
Imóvel.
Irrelevante.
Não é mais algodão, mas antes raiva que o abraça na interminável noite de verão.
Enquanto remói os nomes de todos os que o arrastaram até ali — como se nomeá-los invocasse uma troca: corpos gélidos aprisionados na sua cama, e ele libertado para a terra dos vivos. De regresso a onde pertence.
Há um murmúrio no ar. Tenta ver — de nada lhe serve.
A frustração é lava — espessa, intolerável. Escorre dele até ao soalho, que escalda e fumega.
Ele, ali — na impotência.
Ele, ali — na solidão.
Fica ali, na miséria perpetrada por todos os que lhe pisaram os dias.
Há um chiar ao lado da cama. Ele tenta arrancar-se do torpor. É tudo o que faz: tentar.
A raiva transmuta-se — ganha gosto de cobre. O coração acelera-lhe dentro de um corpo que já age como morto.
Geme — nada se ouve. Na borda da visão, surge uma forma oscilante. À direita, surge outra. E outra, mais à frente.
Estão em todo lado — pela primeira vez, fora do delírio.
Dedos.
Apontam.
Acusam.
Espasma de terror — mas é só a alma que se contorce. O corpo recusa-se a reagir, por despeito.
Os dedos aproximam-se. Lentos. Encorajados pela sua vulnerabilidade — transformam-se em garras. A milímetros. E ele, desenganado, já sabe.
O que querem.
Por que vieram.
Sabe a que ainda está por chegar — pequena, pele imaculada como louça — a mais aguçada de todas.
Pronta para o acariciar. Para o roubar de qualquer pretensão.
Vê-a flutuar, ao fundo da cama.
Sente o peso assentar-se sobre as suas pernas.
Pensa na chave, ouro abandonado debaixo da almofada.
Quer implorar. Confessar. Redimir-se.
Mas nada lhe resta.
Senão aquele peso.
Cada vez mais próximo.
Mais familiar.
Mais insuportável.
Todas aquelas mãos.
Todos aqueles dedos.
E o despertador que não toca.
Quando os mortos falam por gestos, os condenados sofrem-nos em silêncio.
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