O feixe alaranjado cortava a sala, atravessando o calor nauseante.
Ergueu-se — pele colada ao poliéster barato — e enfiou o telemóvel no bolso. A ânsia pesava-lhe o estômago, uma refeição indigesta.
Vá, só uma enquanto espero…
Aproximou-se do frigorífico — do zumbido eletrónico — e puxou a maçaneta, antecipando a descarga elétrica que nunca chegou. Agarrou numa garrafa aleatória, raspou-a contra a madeira lascada do balcão e abocanhou o gargalo.
Esperou.
Gole a gole, olhos postos na guilhotina laranja que clivava a porta, devagar.
Um, dois, talvez três quartos de hora.
Perdeu-se, o imbecil.
Bateu com o punho na bancada, três garrafas tilintaram. O telefone sacudiu na mão. Sorveu o resto da cerveja de uma assentada e saiu.
Um BMW negro aguardava por si, de porta traseira aberta.
Entrou, batendo-a, e enfrentou a nuca do motorista.
— Não lhe faz falta o dinheiro, hum?
A respiração pausada do homem moreno foi a única resposta.
Encostou-se para trás, praguejando contra dentes cerrados.
— Rua do Largo, 23.
O arranque foi imediato.
Olhou pela janela — os azulejos aceleravam em sentido oposto — e afundou-se contra o assento.
Teria de ser sincero.
Soá-lo, pelo menos.
Juntou as mãos sobre o colo.
Na rua, as casas pintavam-se todas de igual sob o vulto da noite.
Teria de o remendar. Não passava mais um minuto naquela pocilga.
Notou uma fachada estranha. Os olhos foram demasiado lentos para a analisar. Não conhecia o atalho.
Sentiu o pé baquetear — som abafado contra o tapete.
Teria de ser magnânimo.
Recuperar o que é meu.
Apercebeu-se de que rodava algo entre os dedos. A chave. Tirara-a do bolso sem pensar. Mesmo no negrume do habitáculo, via os reflexos dourados.
Sinceridade e frieza.
Era noite cerrada, quando olhou novamente pela janela. Ainda assim, deveria reconhecer as silhuetas.
— Está perdido, amigo?
Recebeu a mesma resposta que antes. Cerrou o punho em torno do objeto metálico — dentes cravaram-se-lhe na palma.
— Não me ouve? Perguntei se está perdido.
Levou uma mão ao teto e, com um clique, a luz preencheu o pequeno espaço. Viu a nuca pálida — entre o banco e o apoio para a cabeça — e algo mais. O ar solidificou-se nos pulmões.
Era um buraco de fechadura. A tatuagem mais realista que alguma vez vira — tinta tão negra que não parecia tinta de todo…
Foi a travagem súbita que o arrancou do devaneio. Olhou pelo para-brisa, para a entrada — e a pele começou a crepitar.
Sinceridade e frieza!
Respirou fundo. Relaxou os punhos, sentindo dentes desalojarem-se da palma.
Frieza.
Acenou e, ao agarrar na maçaneta, foi atravessado por um choque elétrico. Retraiu-se com um gemido.
— O que…?
Só então se apercebeu de que o motorista tinha saído do carro. A porta dianteira fechou-se com um clique, mergulhando-o de novo em tréguas.
Puxou de novo a maçaneta. Não houve dor.
E a porta não se moveu.
— Ei!
Olhou através do vidro. Seguiu o motorista com os olhos.
E só então viu.
O semblante.
O andar arrogante.
O casaco desbotado.
Viu-se a si mesmo, trepar as escadas e tocar à porta. A silhueta longilínea dela surgiu na passagem, destacada contra a luz vermelha do hall.
Viu-se segui-la — punhos cerrados, ombros tensos — para dentro de casa.
Enquanto ele — enclausurado, intenções esquecidas — apenas podia gritar.
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